terça-feira, 29 de novembro de 2011

Revisited


'A maldição da humanidade reside no facto de a nossa existência neste mundo não tolerar uma hierarquia fixa e definida, visto que tudo flui e reflui em movimento permanente e que cada um de nós tem de ser percebido e avaliado pelos demais, e que a percepção que têm de nós os menos esclarecidos, os mais limitados e burros é-nos tão importante quanto a dos inteligentes, esclarecidos e subtis. Porque o homem, no fundo do seu ser, depende da imagem impressa na alma de outro homem, mesmo que a alma em questão seja a de um cretino. Por isso, insurjo-me peremptoriamente contra os meus companheiros de ofício, que perante a opinião dos burros, adoptam uma postura aristocrática e proclamam em alto e bom som odi profanum vulgus. Isso não passa de um mero e primário expediente de pacotilha para se furtarem à realidade, uma miserável escapadela para uma postiça altivez! Pelo contrário, quanto mais burra e estreita for essa opinião, mais facilmente nos deixará as orelhas quentes, tal como sentimos mais desconforto num sapato apertado do que num que foi feito à medida.'

(Ferdydurke, Witold Gombrowicz)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Bastões, democracia e "fascismo"

Manuel Lino/TVI 24
Há quem veja um bastão da polícia e grite “Fascismo!”. Os cãezinhos do senhor Pavlov também desatavam a salivar assim que ouviam uma campaínha – foram treinados para isso.

É mais fácil assim, rotular tudo de acordo com imagens pré-concebidas, etiquetas pronto-a-colar, insultos prontos a disparar. Não temos de pensar, verdadeiramente: surge uma imagem e imediatamente dizemos qualquer coisa. Os olhos estão directamente ligados à voz e pelo cérebro já não passa nada. Ter dúvidas? Ná! Às vezes o que parece não é? Nunca!

(Sendo, que muitas vezes, o double standard impera: se um bastão policial arrear num jovem “indignado” que quer derrubar uma barreira, a esquerda bem pensante berra “fascismo!”; mas se um bastão policial arrear num jovem hooligan de uma qualquer claque futebolística que quer derrubar uma barreira, então a mesma esquerda bem pensante aplaude!)

O que se passou ontem em frente à Assembleia, que segui pela televisões, resume-se em poucas palavras: foi colocada nesta manifestação – como em todas que ali ocorrem – uma vedação que impede o acesso dos manifestantes às escadarias. Depois houve manifestantes que tentaram mandar essa vedação abaixo e a polícia impediu. E houve pancadaria e empurrões e o costume nestas ocasiões. Se os manifestantes – aparentemente desenquadrados dos sindicatos – não tivessem tentado derrubar a vedação nada se teria passado.

Depois parece terem existido cenas de violência descontrolada pela polícia, nos arredores da AR, segundo alguns testemunhos – e portanto punam-se os responsáveis. (Já agora digo que também tenho testemunho de se juntaram aos “indignados” profissionais estrangeiros que andam pelo mundo a semear o caos – e agora vieram até cá fazer uma perninha.)

O que me parece recomendável é, portanto, que não se gaste a palavra “fascismo” com tudo e um par de botas. Digamos que será talvez ofensivo para quem sofreu durante 48 anos aquilo alguns chamam fascismo (e outros não), quem sofreu isso todos os dias, quotidianamente, com perseguições, humilhações, murros, pontapés e outras torturas bem mais dolorosas (cujas consequências alguns ainda hoje sofrem), digamos, dizia, que falar em fascismo a propósito do que se passou ontem, talvez possa ser, enfim, excessivo - para não dizer mesmo um tanto insultuoso.

Talvez, digo eu.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A greve geral e o Orçamento

Há dias pediam-me um texto sobre que consequências política teria esta greve para o Governo. Eu respondi - e hoje confirmei: nenhumas.
Duvido que Passos Coelho tenha, alguma vez, pensado que esta greve não chegasse como chegou. Ela era tão inevitável como o caminho que o Governo seguiu. De resto, acredito que greves como a de hoje ajudam o Governo a manter uma saudável tensão social. Saudável, sim, porque enquanto o protesto se organiza desta forma são menores as possibilidades de reais conflitos sociais.
Mas há um discurso que vejo aparecer nesta greve que mais me faz acreditar que, por agora, o Governo não tem que temer a rua. São os muitos sindicalistas que aparecem a criticar a Europa e a culpá-la pela situação vigente. A razoabilidade com que - grosso modo - todos encararam esta greve, PCP e CGTP incluídos, faz-me pensar que Passos Coelho tem ainda tempo para fazer o que entende necessário. E que ainda está de pé aquele acordo informal que lhe permitiu chegar a S.Bento.
Por razões naturais, quem mais parece tremer com a rua é o PS, que (e bem) resolveu não a apoiar oficialmente. Mas olhando para o facebook, a pressão sobre Seguro aumentou com esta nova abstenção. O que deixa o líder socialista na (má posição) de precisar como pão para a boca de uma cedência no Orçamento.
P.S. A resposta do primeiro-ministro ao pedido de protesto de Mário Soares, ontem, foi provavelmente a sua melhor dos últimos cinco meses.

Eu e a greve geral

1. Pertenço ao grupo dos que encontram virtualidades na vinda da troika para Portugal. Acredito que só assim se conseguirá cortar a sério na despesa pública; e acredito nas virtualidades da monitorização permanente da aplicação do programa de ajustamento. Esperando eu – embora, é certo, sem grande convicção – que estas marcas conjunturais a que o país está agora obrigado se tornem, depois, permanentes. 

2. Há quem diga que a necessidade de agora estarmos a ser governados por “estrangeiros” - argumento que, temos de reconhecê-lo, tem o seu quê de xenófobo – representa uma forte 'moção de censura' sobre a nossa classe política. Pois, talvez. Para mim representa algo mais: uma 'moção de censura' a um povo inteiro (onde me incluo, claro) que, repetidas vezes, premiou em eleições quem manifestamente lhe estava a mentir (negando aumentos impostos ou prometendo tudo e um par de botas - pontes, autoestradas, aeroportos, TGVs e quejandos, promessa que, para mal dos nossos pecados, muitas vezes até foram concretizadas, como é óbvio com o dinheiro que não existia e endividando o país por gerações e gerações). 

3. Concordo no essencial com os termos do programa de ajustamento (embora admitindo que os prazos de pagamento do empréstimo possam ser demasiado apertados) e não me parece que o leque de opções ao alcance do Governo para o aplicar seja muito alargado. 

4. Lamento – no Governo e na maioria que o suporta – uma coisa: que o seu empenho em cortar na despesa pública se acobarde totalmente quando enfrenta o 'lobbie' do poder local. E – no Parlamento – que, face ao inevitável recuo do Estado Providência, não se aprovem medidas que obriguem as empresas a reforçar a sua responsabilidade social perante os seus próprios funcionários (creches, assistência médica mínima, etc.). 

5. Não ignoro que cada um julga o filme que vê a partir da cadeira em que está sentado. Na minha decisão face à greve geral admito poder estar condicionado pelo facto de não integrar o grupo dos que serão mais atingidos (funcionários públicos e pensionistas). Mas é verdadeiro o argumento de que sobre os trabalhadores do sector privado paira a núvem, muito negra, do desemprego – algo que não assusta grande parte dos funcionários públicos. Testemunhei na empresa onde trabalho o maior despedimento colectivo de que há memória em grupos de comunicação social em Portugal. Não me lembro de nos trabalhadores do Estado ter acontecido alguma vez algo semelhante. 

6. Compreendo esta greve geral e acho muito bem que as estruturas representativas dos trabalhadores sinalizem permanentemente o poder político (ainda para mais maioritário) de que não pode fazer tudo o que lhe apetece sem ter resposta. 

7. Sei que para o país voltar a voltar a crescer é preciso muito mais do que, simplesmente, limitar o défice e a dívida. É preciso um movimento geral da economia portuguesa e de todos os seus protagonistas – pequenos, médios, grandes, privados, estatais, políticos, etc - que torne possível a cada consumidor português substituir, com ganhos de de preço e qualidade, o consumo de produtos importados pelo consumo de bens nacionais (enfim, a tal questão da “produção de bens transacionáveis”). 

8. Parece-me que neste momento o debate está polarizado – e, como é costume, tristemente panfletário – entre os que acham que as soluções do Governo vão matar o doente com a cura e os que acham que depois da tempestade virá seguramente a bonança.

9. Por mim, pessoalmente, não sei. Não sei se estas soluções vão conduzir (ou não) o país ao tal ciclo infernal grego (austeridade gera recessão que gera mais austeridade que gera mais recessão e por aí adiante) ou, pelo contrário, o colocarão em condições de voltar a crescer. 

10. Em boa verdade, ninguém pode saber – e é aqui que bate o ponto. É impossível julgar um Governo com seis meses de função. É impossível garantir, para além de qualquer dúvida, que os “remédios” que está a aplicar não vão resultar. Falta o “ver para crer” - porque ainda não se viu nada. E é por tudo isto que não vou aderir à greve geral – porque não vejo a greve como uma forma de luta preventiva face a uma realidade que se antecipa.

11. Mas atenção! Dentro de um ano temos mesmo de começar a ver, como o Governo tem prometido, o “princípio do fim” da crise; dentro de um ano tem de se tornar claro, inquestionavelmente claro, que os subsídios de férias e de Natal da função pública e dos pensionistas serão repostos em 2014 (num país com um rendimento médio per capita de 700 euros/mês esta solução não se poderá tornar estrutural). Dentro de um ano, isso sim, veremos. E se em 2014 esses subsídios não forem repostos, então haverá razões para muito mais do que uma greve geral – haverá razões para pensar que o Governo deve ser demitido. 

12. Dentro de um ano darei razão a quem hoje já diz “vamos morrer da cura”. Ou então não. Depende mais da realidade do que de mim próprio.

Levanta-te e anda

Em dia de greve geral é altura de ressuscitar esta coisa. Soyez les bienvenu, como se dizia na Roma antiga.